sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Olhares sobre o Brasil do século XIX – Como as pessoas viviam? – 3ª Parte

 Olhares sobre o Brasil do século XIX – Como as pessoas viviam? – 3ª Parte[1]
Historia da Habitação no Brasil 1822 – 1850[2]
Até o início do século XIX podemos definir que o Brasil vivia sob a seguinte definição: uma sociedade marcadamente rural, com pouca ou irrisória vida urbana. É como se toda a população vivesse nas áreas rurais, o que de fato chegava a ocorrer. Mais de 90% da riqueza produzida em nosso país, recém-independente de Portugal, vinha das fazendas e dos núcleos rurais espalhados pelo seu extenso território. Assim, não é errado definir o universo brasileiro do período como uma sociedade marcada pela “riqueza rural e a miséria urbana”.
Grande parte da população brasileira no século XIX era formada por homens pobres e escravos que viviam nas áreas rurais. Na imagem, "Habitação de negros", obra de Johann Moritz Rugendas (1802 - 1858)[3].
Mas, como você pôde perceber, 1808 começou a trazer uma mudança de realidade para a nossa sociedade. A chegada da família real portuguesa e toda a sua comitiva começou a alterar de maneira significativa a realidade da sociedade brasileira.
Entre 1822 e 1850 as mudanças ocorreram, porém não foram de grande importância, se compararmos com o período anterior (1808 - 1822). Na verdade, a maior e mais importante alteração ocorrida foi à vinda aos poucos dos escravos negros para o espaço urbano, fazendo com que alguns desses saíssem das fazendas e passassem a viver nas cidades.
A vinda desses escravos para as cidades veio acompanhada da necessidade cada vez maior dos habitantes urbanos em terem trabalhadores para os chamados serviços públicos, bem como para serviços privados. Logo, logo você irá entender uma afirmação que faremos agora: a cidade, o espaço urbano veio acentuar as desigualdades sociais entre negros e brancos, acentuar o fosso que separava negros e brancos em nossa sociedade. Mas também trouxe de maneira bastante intensa as discussões acerca dos movimentos abolicionistas para o Brasil.
Cidade do Rio de Janeiro, em 1834. Pintura feita por Jean-Baptiste Debret (1768 – 1848) [4].
Como seria uma cidade brasileira na primeira metade do século XIX?
Imagine-se um brasileiro vivendo em uma cidade brasileira. Acredite, isso é bem difícil, bem difícil mesmo. Só para você ter uma ideia ninguém, absolutamente ninguém tinha exata ideia de quantos brasileiros existiam no Brasil em 1822. Nem em 1840, nem 1850... Aliás, foi só em 1872 que se realizou o primeiro censo em nosso país. Antes disso, o que se tem são suposições, baseadas em alguns poucos e imprecisos registros.
Dê uma olhada na tabela abaixo. Perceba que os dados de 1872 são bem mais precisos[5].
Ano
Brancos livres
Mulatos livres
Índios livres
Total livres
Escravos negros
Total
1818
1.043.000 – 27,3%
585.500 – 15,3%
259.400 – 6.9%
1.887.900 – 49,5%
1.930.000 – 47,9%
3.817.900 – 100%
1850
2.436.000 – 31%
2.732.000 – 34%
302.000 – 3,8%
5.520.000 – 68,8%
2.500.000 – 31,2%
8.020.000 – 100%
1872
3.787.289 – 38,1 %
4.245.428 – 42,8%
386.955 – 3,9%
8.419.672 – 84,8%
1.510.806 – 15,2%
9.930.478 - 100%
O que foi revelado, através do censo 1872, era um país essencialmente rural, formado por quase dez milhões de habitantes, o que hoje seria a população da cidade de São Paulo. Nesse período a maioria da população era formada por homens (aproximadamente 52%), sendo que os estados mais populosos eram (em ordem decrescente) Minas Gerais (de cada cinco brasileiros um era mineiro), Bahia, Pernambuco, e só depois Rio de Janeiro e São Paulo (hoje o estado mais populoso).
Então, muito provavelmente você seria um mineiro, vivendo em uma área rural. Agora, caso fosse um habitante das cidades, provavelmente viveria em alguma das cidades mineiras erguidas no período pomposo da mineração em nosso país, lá no século XVIII. Aliás, essas eram as únicas cidades do início do século, excetuando talvez Salvador (Bahia) e Rio de Janeiro (Rio de Janeiro) com vida social urbana considerável. As outras, como é o caso de São Paulo, se quer poderiam ser entendidas como cidades, já que na verdade eram áreas rurais, vilarejos cercados por densa mata e inúmeras áreas inóspitas (ou seja, que ainda não haviam sido exploradas pelo governo).
Ouro Preto era uma das poucas cidades brasileiras do período. Em Ouro Preto foi fundada o que seria a primeira escola de Farmácia da América do Sul, 1839.
Imagem da cidade em 1870[6]

As cenas que talvez você mais presenciasse ao redor das cidades seriam a de homens com machados derrubando árvores, principalmente entre as regiões do Rio de Janeiro e Minas Gerais, seja para construção de estradas (não vá pensando em estradas asfaltadas... Era chão de terra batida mesmo), seja para iniciar o plantio do café.
Aliás, leia que registro mais interessante sobre esse momento:
“O trabalho foi duro. Os machados cantaram de sol a sol nos troncos das perobeiras[7]; o escurecer, ouvia-se o grito de alerta e, logo depois, a árvore pendia para o lado, desabava com estrondo, alarmando o silêncio da floresta. Centenas e centenas de troncudos jacarandás[8] tiveram o mesmo fim. Para trás, em pé, só ficou um pau-d’alho[9], como padrão de terra boa. (...) Era ali, naquela copa diluída no céu, que pousavam maitacas e tiribas[10], em bandos tão espessos que toldavam[11] a limpidez das tardes. Ao escurecer, o sabiá-coleira cantava a tristeza do sertão”[12]
Essa gravura, feita por Rugendas, mostra o que o relato acima nos contou[13].

Voltando à nossa experiência, muito provavelmente, caso você fosse um homem livre, estaria trabalhando em alguma das fazendas da região, indo muito esporadicamente para as cidades. Nas cidades havia pouquíssimo emprego, e toda a economia girava entorno das fazendas de café. Aliás, havia fazendas que reuniam muito mais moradores do que cidades inteiras do Brasil nesse período. Algumas fazendas tinham mais de mil pessoas vivendo nelas.
Essas primeiras fazendas foram instaladas na região entre Minas Gerais e São Paulo, sendo iniciadas por comerciantes, tropeiros ou mineradores, que dispondo de dinheiro investiam na formação dos cafezais. A região do Vale do Paraíba, antes coberta pela exuberante Mata Atlântica, dava vez às fazendas de café.
As “cidades-fazenda” eram realmente o mundo dos brasileiros nesse período. Leia esse trecho que retrata como eram as fazendas de café.
“No centro da propriedade ficava o terreiro, um grande quadrado pavimentado, em torno do qual se distribuíam as demais construções, de acordo com a importância e a necessidade.
A casa-grande, em posição de maior destaque em relação às demais construções, era um sobrado construído de taipa de pilão, com divisórias de pau a pique (abaixo você verá imagens de construções desse tipo). Tinha numerosas janelas, sala de jantar com imensas mesas de jacarandá[14], quartos de todos os feitios, alguns até escuros, sem janelas, as chamadas alcovas[15]. A cozinha, muito grande e com chão de terra batida, possuía no centro um fogão de lenha. Não havia banheiros; os seus moradores usavam bacias para o banho, e urinóis[16].
Ao lado da casa havia a capela, frequentada pelos senhores e pelos escravos; havia também o pomar, o jardim, a horta e os locais destinados à criação de animais domésticos; ainda em torno do terreiro ficavam as construções ligadas ao trabalho: a senzala (casa dos escravos), a casa do administrador, a marcenaria, a carpintaria e a ferraria. Esse conjunto de casarões austeros e muralhas ao redor de um quadrado desnudo e pavimentado tinha um aspecto triste, lembrando mais uma fortificação que um estabelecimento agrícola. Daí, a denominação de fortaleza dada a muitas fazendas” [17].
Uma fazenda de café do século XIX. Óleo de Johann Georg Grimm (1846 – 1887)[18].
Na verdade, as cidades tinham uma função muito específica, bem específica mesmo. Elas eram as centrais políticas do país, onde os grandes barões do café, os homens mais poderosos da nação se reuniam para debater as suas ideias. A casa do barão do café na cidade funcionava como escritório político. Às vezes, o barão ia até a sua casa na cidade, discutia os assuntos, e tão logo tivesse terminado as discussões, voltava para a fazenda.
Essas casas do século XIX eram diferentes das que foram construídas até então no Brasil. Elas tinham um estilo que tentava copiar o estilo das casas inglesas, com grandes colunas e janelas. Assim, buscava-se dar a ideia de que eram cidades europeias em pleno solo americano. 
Portanto, você pôde notar que a vida no espaço urbano era bem diferente do que temos nos dias de hoje. Mas fica a pergunta: e a população pobre do Brasil? Havia pobres morando nas cidades?
Bem, no período de 1822 a 1850 eram raros os moradores urbanos, como vimos. E os que moravam nas cidades viviam em condições muito parecidas com os moradores das áreas rurais, já que praticamente não havia grande diferença entre esses dois mundos. Parte significativa dos moradores das cidades era formada por escravos negros. Realizavam trabalhos domésticos, desde o preparo da comida das famílias dos barões do café, a locomoção destes, carregando-os em cadeirinhas, cuidando de esvaziar os urinóis, carregando para fora das casas as urinas e fezes dos seus senhores, até no trato dos filhos das senhoras brancas.
A presença de escravos negros nas cidades brasileiras começou a se tornar cada vez mais comum no século XIX. Com a chegada da família real portuguesa em 1808 e o início de um processo de modernização do espaço urbano no Brasil, ficou clara a necessidade dos trabalhadores nesses espaços. E o escravo negro era a mão de obra ainda muito utilizada no período.  Não à toa, em 1835, na cidade de Salvador, ocorreu uma das maiores revoltas escravas do século XIX no Brasil: a Revolta dos Malês.
Malê era forma como era conhecido no Brasil o escravo africano muçulmano. A revolta ocorreu entre 24 e 25 de janeiro de 1835, levando a participação de centenas de escravos. Rapidamente a elite branca tratou de eliminar o movimento, matando cerca de setenta, e condenando mais de quinhentos, com penas que iam desde a deportação, até a execução.
Um dos motivos para a ocorrência da revolta no espaço urbano foi o fato de que havia uma insatisfação crescente das populações mais pobres que habitavam as cidades. Sejam escravos negros, índios, ou mesmo homens livres pobres, as cidades aumentavam as desigualdades sociais. As áreas mais insalubres, sem as mínimas condições de higiene, recebiam os moradores mais pobres do Brasil. E tinha início o surgimento dos cortiços, construções rudimentares, agregando um enorme número de pessoas, muitas das quais negros alforriados, mulatos e índios livres. Os cortiços se proliferaram de maneira impressionante pelas cidades brasileiras no século XIX. Poderiam ser comparados com as favelas brasileiras.
Cortiço brasileiro no início do século XX. 

Assim, a maioria dos moradores dos espaços urbanos vivia em condições de miséria, vivendo em função do que era produzido no campo, nas lavouras de café. As cidades funcionavam como hospedarias, abrigando tropeiros que carregavam sacas e mais sacas de café nos lombos de mulas e burros até chegar aos portos onde a mercadoria seria levada para a Europa.




[2] RAMOS, Pedro Henrique Maloso
[3] Imagem retirada do sítio http://www.camaracampos.rj.gov.br/tp-cultura/exposicao-escravidao-no-brasil/
[4] Imagem retirada do sítio http://commons.wikimedia.org/wiki/File:RealTeatroSJoao-Debret-1834.jpg
[5] MALHEIRO, Perdigão. Escravidão no Brasil. In Quevedo, Júlio. A escravidão no Brasil: trabalho e resistência/ Júlio Quevedo, Marlene Ordõnez. – São Paulo: FTD, 1996. – (Para conhecer melhor). p. 38.
[6] Imagem retirada do sítio http://pt.wikipedia.org/wiki/Ouro_Preto
[7] Designação comum a várias espécies de árvores. Tais árvores tiveram suas madeiras utilizadas na construção de móveis e suportes para as casas.
[8] Outra espécie de árvore que, assim como as perobas, era de grande porte.
[9] Mais uma espécie de árvore. Sua ocorrência era tida como indício de que a terra era fértil.
[10] Tanto maitacas quanto tiribas são espécies de psitacídeos, pássaros da família dos papagaios e araras 
[11] Cobriam. Ou seja, eram tantas que cobriam os céus.
[12] Afonso Schimidt, A Marcha in Toledo, Vera Vilhena de. Sua Majestade o café/ Vera Vilhena de Toledo, Cândida Beatriz Vilares Gancho. – São Paulo: Moderna, 1992 – (Coleção Desafios); p. 23.
[13] Imagem extraída do sítio http://www.osaqua.com.br/2014/05/06/tenente-coronel-da-guarda-nacional-o-barao-de-saquarema-foi-o-inventor-do-municipio/
[14] Espécie de árvore.
[15] Quarto de dormir... Mais está mais para quarto dos pesadelos!
[16] Nos urinóis, que muitas vezes eram baldes de madeira, eram feitas as necessidades fisiológicas.
[17] Toledo, Vera Vilhena de. Sua Majestade o café/ Vera Vilhena de Toledo, Cândida Beatriz Vilares Gancho. – São Paulo: Moderna, 1992 – (Coleção Desafios); p. 28.
[18] Imagem extraída do sítio http://www.turismovaledocafe.com/2011/10/johann-georg-grimm-e-as-fazendas-de.html

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