terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Olhares sobre o Brasil do século XIX – Como as pessoas viviam? – 1ª Parte.

Olhares sobre o Brasil do século XIX – Como as pessoas viviam?[1] – 1ª Parte.
A história da habitação no Brasil no século XIX pode ser brilhante exemplificada e entendida através de uma obra literária: “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo, publicado em 1890[2]. Isso se nos debruçarmos em uma análise que leve em conta as habitações populares dos espaços urbanos das maiores cidades brasileiras na segunda metade do século XIX. O povão das cidades, a maior parte da população, vivia nos mais diversos cortiços, principalmente em cidades como o Rio de Janeiro. Nesses espaços, marcados por cômodos minúsculos, banheiros coletivos e pouca (para não dizer nenhuma) privacidade, se reuniam homens brancos, portugueses ou não, negros alforriados, viajantes que alugavam quartos por um determinado período. A pluralidade da sociedade brasileira estava presente nos cortiços. Por isso, em sua obra, Aluísio conta que se ouvia desde os tristes fados cantados pelos portugueses até o barulho dos atabaques e pandeiros, tocados pelos negros.
Nos outros espaços, a população brasileira vivia em casas extremamente simples, muitas delas com telhados forrados por folhas de palmeira, paredes de pau a pique (uma estrutura armada com bambu e cipó, e depois preenchida com barro) ou nas instalações das fazendas produtoras de café.
Em um país marcadamente rural era muito raro as pessoas viverem nas cidades. As casas não possuíam muitas das estruturas vistas hoje. Não havia privada, o banho era tomado em tinas d’água (quando não no rio) e o chão era normalmente de terra batida. Aliás, a vida no interior das casas mais humildes se resumia a dormir, comer e outras poucas coisas, uma vez que os espaços eram escuros e não tão auspiciosos para receber visitas.   
Casa com parede de pau a pique, imagem ainda comum no interior de algumas regiões do Brasil[3].

O que as pessoas comiam?
Hoje você liga para o delivery e em questão de minutos o seu pedido está em mãos. Quando não você vai até o mercado mais próximo e volta com a sacolinha cheia de mercadorias para degustar, do pãozinho matinal até os ingredientes para a macarronada do domingo.
E no século XIX? Era assim também? Rolava um mercado a poucos metros de casa? Que nada. Mesmo nos centros urbanos eram raros os mercados que forneciam viveres, comida, alimentação. Conhecidos popularmente como vendas, tais espaços existiam nos centros urbanos e em algumas áreas de fazenda. Já no inicio da formação do Brasil colônia se configuraram como um dos poucos lugares onde os brasileiros conseguiam comprar coisas para colocar na mesa. E logo se tornaram áreas de intensa e interessante vida social. O dono da venda normalmente era um dos camaradas mais bem informados da região. Sabia das últimas ocorridas aqui e acolá, quem chegou e quem partiu.
Na obra “O Cortiço”, Aluísio narra a venda de João Romão, um comerciante português que também era dono do cortiço e da pedreira onde se desenrola a história. Fica claro na obra que a venda de Romão era um espaço para adquirir mercadorias, mas muito mais para conversar, sentar e tomar um gole de cachaça, ou restilo, como era chamado na época.
Assim, uma das áreas de lazer dos homens e chefes de famílias do século XIX no Brasil era, de certa forma, a porta da venda.
De resto, era comum que nas áreas mais isoladas as famílias criassem galinha, porcos e, em casos raros, cabeças de gado para conseguirem se alimentar. E a alimentação era complementada pelo peixe pescado nos rios e lagos e pelo animal caçado nas matas.
Tal situação acima descrita não foi exclusividade do Brasil. Famílias dos EUA, durante o século XIX, se alimentavam de aves nativas, principalmente na época das festividades. Daí, sobrava para o peru, ave das florestas da América do Norte. No Brasil quem ia para panela eram codornas, marrecas e jacus...
Caçadores estadunidenses no começo do século XX. “Hoje tem peito de peru!”[4]
Na mesma obra acima citada, Aluísio narra um interessante fenômeno ocorrido com os homens portugueses (ou demais estrangeiros) que passavam a residir no Brasil: eles se abrasileiravam, se tornavam brasileiros nos usos e costumes. E a alimentação acompanhava essa curiosa e intrigante transformação. Através de um relato feito nas páginas do livro “O Cortiço”, Aluísio possibilita que conheçamos o que ia aos pratos do Brasil, algumas das nossas iguarias do século XIX. Acompanhe:
“E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. (...) A revolução afinal foi completa: a aguardente de cana substitui o vinho; a farinha de mandioca sucedeu à broa; a carne-seca e o feijão-preto ao bacalhau com batatas e cebolas cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-de-cheiro invadiram vitoriosamente a sua mesa; o caldo verde, a açorda e o caldo de unto[5] foram repelidos pelos ruivos e gostosos quitutes baianos, pela muqueca[6], pelo vatapá[7] e pelo caruru[8]; a couve à mineira destronou a couve à portuguesa; o pirão[9] de fubá ao pão de rala[10], e, desde que o café encheu a casa com o seu aroma quente, Jerônimo principiou a achar graça no cheiro do fumo e não tardou a fumar também com os amigos”.[11].
Vatapá, um dos pratos acima citados como parte do processo de abrasileiramento do português Jerônimo[12].
Em nosso próximo texto sobre o século XIX no Brasil, veremos como as pessoas se locomoviam e se comunicavam. Aguarde!














[1] RAMOS, Pedro Henrique Maloso
[2] A edição utilizada para a confecção desse texto foi a seguinte AZEVEDO, Aloísio. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1997
[3] Imagem extraída do sítio http://www.verdegrande.cbh.gov.br/galeria.aspx
[4] Imagem extraída do sítio http://www.turkeydog.org/
[5] Ambos os pratos, açorda e caldo de unto, são pratos típicos de Portugal. A açorda é uma espécie de sopa, tendo como ingredientes principais alho, sal, azeite, água em ebulição e pão fatiado. Já o caldo de unto é outra sopa, porém feita com banha de porco (esse o ingrediente que dá nome à sopa, o unto).
[6] Muqueca (moqueca seria a grafia mais utilizada, porém ambas são corretas) é um cozido de peixe com camarão, lagosta, palmito e frutos do mar com diferentes temperos.
[7] Vatapá é um prato típico da Bahia, e o seu preparo pode incluir pão molhado ou farinha de rosca, fubá, gengibre, pimenta-malagueta, amendoim, castanha de caju, leite de coco, azeite de dendê, cebola e tomate. Pode ser preparado com camarões frescos inteiros, ou secos e moídos, com peixe, com bacalhau ou com carne de frango, sendo muitas vezes acompanhados de arroz. Possui uma consistência é cremosa.
[8] O caruru trata-se de um cozido de quiabos (carurus). Costuma ser servido acompanhado de acarajé ou abará, de pedaços de carne, frango ou peixe, de camarões secos, de azeite de dendê e de pimenta.
[9] O pirão nada mais é do que um prato feito à base de farinha de mandioca, tendo por vezes uma consistência de sopa.
[10] Parte da culinária portuguesa, o pão-de-rala leva em sua receita muitos ovos, além de açúcar, raspa de limão, amêndoas e abóbora.
[11] AZEVEDO, Aloísio. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1997. p. 86.
[12] Imagem extraída do sítio http://pt.wikipedia.org/wiki/Vatap%C3%A1

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