sábado, 8 de outubro de 2016

A PESTE - Uma análise histórica

“Os homens se evitavam [...] parentes se distanciavam, irmão era esquecido por irmão, muitas vezes o marido pela mulher; ah, e o que é pior e difícil de acreditar, pais e mães houve que abandonaram os filhos à sua sorte, sem cuidar deles e visitá-los, como se fossem estranhos...”[i]  (Giovanni Boccaccio, 1352)
1. Apresentação
O presente trabalho tem como objetivo central apresentar uma análise geral sobre uma das enfermidades ainda presentes na sociedade contemporânea, e que por períodos diversos resultou em crises epidêmicas (quiçá uma pandemia durante a Idade Média, se considerarmos a concepção de mundo aos olhos europeus englobando a Europa e partes do continente asiático). A peste bubônica, também conhecida nos tempos medievais como peste negra.
Buscar-se-á construir uma narrativa que associe os fatos históricos com as medidas adotadas para o combate da doença nas mais diversas regiões, dando especial atenção ao Brasil.
 2. Introdução
As crises epidêmicas pelas quais a humanidade já passou tornam-se fatos históricos de tamanha importância que muitos são os filmes, livros e imagens que registram o assunto. Elas mudam a forma como as pessoas encaram a sociedade, a vida. Para lembrarmos de um caso próximo basta mencionarmos a gripe relacionada ao vírus H1N1 (popularmente conhecida como gripe suína). Originada no México, ela fez com que a capital daquele país ficasse com as ruas vazias no período de surto[1] da doença, trazendo inclusive consequências econômicas consideráveis, como o fechamento de companhias aéreas de bandeira mexicana.

Isso porque as pessoas ficaram com medo de contrair a doença. Aqui no Brasil, as aulas nas escolas foram suspensas, e medidas diversas passaram a ser propaladas como elementos de redução e combate à proliferação da doença, tais como o uso do álcool gel.
Na Idade Média muitas foram as crises epidêmicas, e algumas vezes as doenças assumiram o (triste) papel de segregação social. Basta comentarmos a questão da Hanseníase durante a Idade Média.
Popularmente conhecida como lepra, tal enfermidade é infecciosa, sendo de evolução crônica, causada por uma bactéria, o Mycobacterium leprae, microorganismo que acomete principalmente a pele e os nervos das extremidades do corpo. O histórico da doença é bem triste, marcado por eventos de discriminação e isolamento dos enfermos. Eram criados locais onde muitas delas passavam a viver, chamados de leprosários ou gafarias. Quem possuísse a doença deveria andar com objetos de metal pendurados pelo corpo, indicando que estava se aproximando. De fato, um passado triste, de discriminação e isolamento dos doentes, que hoje já não existe e nem se faz necessário, uma vez que a doença pode ser tratada e curada.  
3. A Peste - Um breve histórico
Muitos livros de História dão conta de que os surtos de peste foram trazidos do Oriente com as Cruzadas. Mas vale lembrar que antes das Cruzadas, bem antes, a Europa Medieval era assolada por crises epidêmicas. É fato, no entanto, que o maior surto se iniciou entre os séculos XII e XIV, se estendendo por muitos anos. A forma mais comumente conhecida foi a peste bubônica.
A peste bubônica ficou popularmente conhecida como peste negra. Cerca de um terço da população da Europa morreu em virtude da peste bubônica. Para se ter uma simples ideia, é como se de cada três pessoas que vivessem na época uma tivesse contraído a peste e morrido. Na época, todas as explicações partiam da questão religiosa. Assim, Giovanni Boccaccio (1313 - 1375) buscou justificar a ocorrência da peste como “um justo castigo divino”. E não só ele, mas muitas outras pessoas que viveram no período. Hoje, sabemos, a peste é transmitida pelas pulgas que se alimentam do sangue dos ratos e depois se alimentam do nosso. Elas transmitem uma bactéria que só foi descoberta bem no final do século XIX e recebeu o nome de Yersinia pestis. Muito mais forte do que os soldados medievais, a Yersinia não fazia distinção entre camponeses, senhores feudais e padres. Matou muitas, muitas, pessoas. Como os hábitos de higiene não eram muito comuns no período, as pessoas constantemente carregavam pulgas nas roupas. Assim, uma passava para a outra e, em poucos dias, o camponês, o senhor feudal, o padre apresentavam um quadro febril, seguido de um inchaço nas juntas (os bulbos), marcado por uma cor rubra (um vermelho bem escuro), indicando a necrose, ou seja, o apodrecimento dos tecidos, vasos sanguíneos e carne. Era a peste se manifestando dias após a picada da pulga.
Mas não foi só a peste bubônica que matou na Idade Média. Não! Tivemos a peste pneumônica, muito pior inclusive. A peste pneumônica, acreditam os cientistas, seria decorrente da bubônica, só que transmitida por gotas de saliva. Se a bubônica era transmitida pela picada da pulga, bastava um doente tossir próximo a alguém sem cobrir a boca que a pneumônica se espalhava. E a doença se manifestava com uma força maior.
Fato é que os primeiros registros dão conta de que a peste bubônica chegou à Europa via península Itálica, junto com os mercadores que voltavam do Oriente para abastecer as prósperas cidades italianas. E isso por volta da primeira metade do século XIV.
Conforme alguns pesquisadores e pesquisas, a peste negra é originária das estepes da Mongólia, onde pulgas hospedeiras da bactéria Yersinia pestis infectaram diversos redores que entraram em contato com zonas de habitação humana. Na Ásia, os animais de transporte e as peças de roupa dos comerciantes serviam de abrigo para as pulgas infectadas. Nos veículos marítimos, os ratos eram os principais disseminadores dessa poderosa doença. O intercâmbio comercial entre o Ocidente e o Oriente, reavivado a partir do século XII, graças às Cruzadas e os Renascimentos Comercial e Urbano, explica a chegada da doença na Europa.
 4. A doença e o combate à mesma
Como vimos, o contato humano com a Peste se dá e desenvolve-se principalmente pela mordida de pulgas, que antes se alimentam do sangue dos ratos ou pela transmissão aérea (peste pneumônica).
Em sua variação bubônica, a bactéria cai na corrente sanguínea, atacando o sistema linfático e provocando a morte de diversas células, o que acaba por criar dolorosos inchaços entre as axilas e a virilha. Sequencialmente, e como resultado do quadro relatado, esses inchaços, conhecidos como bubões, se espalham por todo corpo.
Já quando ataca o sistema circulatório, o infectado tem uma expectativa de vida de aproximadamente uma semana, caso não se inicie um imediato tratamento. Além de atacar o sistema linfático, a enfermidade também pode atingir o homem pelas vias aéreas atacando diretamente o sistema respiratório (novamente estamos tratando da peste pneumônica). No caso da peste pneumônica, após o contágio o individuo tinha uma expectativa de vida de, no máximo, dois dias.
A ausência de quaisquer conhecimentos científicos fez surgir medidas profiláticas preconceituosas e ridículas. Movimentos de xenofobia e aversão aos judeus se tornaram comuns no período. Como a população judaica da Europa, bem como do Oriente, adotava medidas de higiene, algo inovador para a época, dificilmente ficavam doentes e morriam. Logo, as populações católicas da Europa passaram a definir que a Peste nada mais seria de que uma maldição trazida pelos judeus. E muitos foram os católicos que passaram a perseguir e matar pessoas judaicas.
Outros afirmavam que as cidades carregavam essa maldição, culpa dos burgueses, que cometiam um dos pecados capitais, segundo a Igreja Católica: a usura. De fato, as cidades eram locais de maior incidência da doença, uma vez que havia um número maior de pessoas por km2. Genial foi Leonardo da Vinci (1452 - 1519), que já no século XV começou a associar a proliferação de doenças nas cidades com a falta de higiene das mesmas. Assim, Leonardo propôs as primeiras obras de saneamento básico, além de passar a adotar medidas de asseio, tais como o uso de um pano umedecido para se limpar ao final dos dias. Fato é que, Leonardo chegou próximo aos setenta anos em uma época em que a expectativa de vida mal chegava aos 40!
Os surtos urbanos duravam cerca de quatro a cinco meses, mas houve cidades que conviveram por décadas com a doença. Depois de matar muitos citadinos, outra crise se instalava. E que também fazia as suas vítimas!
Não havia nenhum tipo de abastecimento, nem pessoas para exercer as mais simples funções. Seja no campo, seja na cidade, a Peste trazia consigo um rastro de catástrofes. Com a morte de muitos camponeses, várias foram as regiões da Europa que ficaram sem produzir absolutamente nada. Sem alimento a situação ficava cada vez pior. Só para se ter uma ideia, muitas foram as regiões que quase viram pequenos reinos e feudos desparecerem porque não havia gente para trabalhar. Um documento histórico mostra claramente isso
“A fim de que meus escritos não pereçam juntamente com o autor, e este trabalho não seja destruído... deixo meu pergaminho para ser continuado, caso algum dos membros da raça de Adão possa sobreviver à morte e queira continuar o trabalho por mim iniciado”[2].
No final do século XIV a Peste matava 200 pessoas por dia em Londres e cerca de 800 em Paris. Sem camponeses, o sistema feudal se enfraquecia. Foram as crises epidêmicas uma das principais causas do fim do feudalismo, sem dúvida.
Diante de tal quadro, até o século XIX, as medidas mais adotadas (porém pouco eficientes) eram criar locais de quarentena para os infectados, impedir a chegada de novas pessoas, circundar e isolar algumas cidades. Mais uma vez, quem nelas estava morreria. Seja pela Peste, seja pelo abandono. Segundo as estimativas até o final da Idade Média, a Peste matou por volta de 75 milhões de pessoas! Indubitavelmente, uma das maiores crises epidêmicas que o mundo já presenciou.
A partir do século XVIII as crises epidêmicas na Europa diminuíram, porém outras áreas do globo já sentiam os seus efeitos. Uma dessas áreas era o Brasil. E, partir da agora esse será o nosso foco: tratar da Peste em solo brasileiro.
5. O Brasil e a Peste
Diversos e importantes artigos científicos, bem como dissertações em áreas da pós-graduação têm sido escritos abordando o tema. E ainda muitas incertezas persistem sobre esse assunto.
Para discorrer sobre o mesmo, será utilizada algumas informações trazidas com a dissertação de mestrado de Matheus Alves Duarte da Silva. O tema central da pesquisa foi a crise epidêmica que assolou a cidade do Rio de Janeiro nos idos de 1900.
No dia 21 de maio de 1900 foi declarada uma epidemia de peste bubônica na então capital do Brasil. Os primeiros casos haviam sido registrados no mês de janeiro, atingindo a população mais pobre da cidade, formada por moradores da zona portuária e trabalhadores de armazéns.
Mas essa não foi a única epidemia do Rio, nem do Brasil. Quase que anuais, entre 1900 e 1904, a doença matou um pouco mais de 1300 cariocas. Assim como no caso da Europa, a doença também chegou trazida do Oriente, desembarcando no Brasil com os ratos que vinham nos navios que aportavam em Santos. A situação começou a assumir proporção tamanha que motivou o governo federal a designar Oswaldo Cruz para "verificar a etiologia da epidemia de Santos junto com Adolpho Lutz e Vital Brazil. Com a confirmação oficial de que se tratava da peste bubônica, as autoridades sanitárias decidiram instituir laboratórios para produção de vacina e soro contra a peste: o Instituto Butantan, em São Paulo, e o Instituto Soroterápico Municipal no Rio de Janeiro, que mais tarde viria a se tornar a Fiocruz"[3].
É interessante analisarmos a enorme importância dada pelo governo para o combate à doença. No entanto, medidas como o combate às pragas urbanas, essa ainda hoje padecem de ações mais efetivas. Isso porque parte significativa do Brasil não possui saneamento básico. E o descarte desordenado de esgoto e lixo doméstico é fator circunstancial para a proliferação de ratos e ratazanas (basta lembrar que essa última espécie, também trazida para o solo americano com as embarcações que vinham da Europa assumiu o papel de vetor da doença).
Em 1903 o governo da prefeitura do Rio de Janeiro estabelecia prêmios para aqueles que matassem ratos e os entregassem ao governo. Ações que obviamente geraram um mercado paralelo. Há registros de pessoas que criavam os animais e depois o matavam. "A imprensa da época não perdeu a piada".
A partir da criação de institutos de pesquisa e de produção de vacina, a doença diminuiu sua manifestação. O Butantan assumiu papel preponderante nesse processo. Mas ainda hoje se registram casos, dentro e fora do Brasil.
O sítio virtual do Ministério da Saúde do Brasil mantém uma pequena nota sobre a doença, e o perigo de proliferação da mesma.
Como dito, fora do Brasil a doença ainda vitima e mutila pessoas. Um recente caso nos EUA provocou uma caçada cinematográfica aos ratos. Um fazendeiro do Estado do Texas foi visitar a irmã em Nova Iorque, mas ao chegar ao destino final foi encaminhado ao hospital. Diagnóstico: peste bubônica. O senhor de idade teve as duas pernas mutiladas.
Em recente matéria da BBC, aparecem dados sobre a ocorrência da peste nos EUA, inclusive com um título bastante provocativo, conforme legenda abaixo.
"Em pleno século 21, EUA convivem com a peste, que matou milhões na Idade Média - Os Estados Unidos levaram o homem à Lua há quase 50 anos, mas americanos ainda morrem de uma doença que arrasou a Europa na Idade Média. Por que isso ocorre?"[4]

Fato é que dados estatísticos dão conta de um crescimento da doença nos EUA. E fortuitamente casos também são registrados em outras nações, inclusive no Brasil.
A peste é de comunicação obrigatória às autoridades. Ainda hoje os indivíduos que apresentam a doença são postos em quarentena. O tratamento com antibióticos revolucionou o combate à doença, sendo que a mesma passou a ser classificada como de certa facilidade de controle e combate.
Tanto no Brasil quanto fora, a notificação é compulsória, precedendo uma obrigatória investigação.

6. Bibliografia
Franco JR., Hilário. O Feudalismo. São Paulo, Brasiliense. (Co. Tudo é História, no. 32).
___________. As Cruzadas. São Paulo, Brasiliense. (Col. Tudo é História, no. 34)
___________. A Idade Média. O nascimento do Ocidente. São Paulo, Brasiliense.
___________ & OLIVEIRA, Ruy de. O império Bizantino, São Paulo. Brasiliense (Col. Tudo é História, no. 107).
História de Portugal/ José Mattoso... [et al]; José Tengarrinha (org.). Bauru, EDUSC.
História do Brasil. Empresa Folha da Manhã e Zero Hora/ RBS Jornal: São Paulo; 1997; 2ª. Edição. 
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem/ Leo Huberman; tradução de Waltensir Dutra. – 21ª. ed. – Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
Miceli, Paulo. O feudalismo. São Paulo, Atual. (Col. Discutindo a História).
Monteiro, Hamilton M. O feudalismo. Economia e sociedade. São Paulo, Ática. (Série Princípios, no. 39)
Moraes, José Geraldo Vinci de. Caminho das Civilizações: da pré-história aos dias atuais – São Paulo, Atual.




[1] em linhas bem gerais, período onde a doença está se espalhando.
[2] HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem/ Leo Huberman; tradução de Waltensir Dutra. – 21ª. ed. – Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 49
[3]https://agencia.fiocruz.br/historiador-investiga-epidemia-de-peste-no-rio-de-janeiro-em-1900
[4] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151015_peste_eua_tg

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