“Os homens se evitavam [...] parentes se
distanciavam, irmão era esquecido por irmão, muitas vezes o marido pela mulher;
ah, e o que é pior e difícil de acreditar, pais e mães houve que abandonaram os
filhos à sua sorte, sem cuidar deles e visitá-los, como se fossem estranhos...”[i] (Giovanni Boccaccio, 1352)
1. Apresentação
O
presente trabalho tem como objetivo central apresentar uma análise geral sobre
uma das enfermidades ainda presentes na sociedade contemporânea, e que por
períodos diversos resultou em crises epidêmicas (quiçá uma pandemia durante a
Idade Média, se considerarmos a concepção de mundo aos olhos europeus
englobando a Europa e partes do continente asiático). A peste bubônica, também
conhecida nos tempos medievais como peste negra.
Buscar-se-á
construir uma narrativa que associe os fatos históricos com as medidas adotadas
para o combate da doença nas mais diversas regiões, dando especial atenção ao
Brasil.
2. Introdução
As crises epidêmicas pelas quais a humanidade já passou
tornam-se fatos históricos de tamanha importância que muitos são os filmes,
livros e imagens que registram o assunto. Elas mudam a forma como as pessoas
encaram a sociedade, a vida. Para lembrarmos de um caso próximo basta
mencionarmos a gripe relacionada ao vírus H1N1 (popularmente conhecida como
gripe suína). Originada no México, ela fez com que a capital daquele país
ficasse com as ruas vazias no período de surto[1]
da doença, trazendo inclusive consequências econômicas consideráveis, como o
fechamento de companhias aéreas de bandeira mexicana.
Isso
porque as pessoas ficaram com medo de contrair a doença. Aqui no Brasil, as aulas
nas escolas foram suspensas, e medidas diversas passaram a ser propaladas como
elementos de redução e combate à proliferação da doença, tais como o uso do
álcool gel.
Na
Idade Média muitas foram as crises epidêmicas, e algumas vezes as doenças
assumiram o (triste) papel de segregação social. Basta comentarmos a questão da
Hanseníase durante a Idade Média.
Popularmente
conhecida como lepra, tal enfermidade é infecciosa, sendo de evolução crônica,
causada por uma bactéria, o Mycobacterium
leprae, microorganismo que acomete principalmente a pele e os nervos das
extremidades do corpo. O histórico da doença é bem triste, marcado por eventos
de discriminação e isolamento dos enfermos. Eram criados locais onde muitas
delas passavam a viver, chamados de leprosários ou gafarias. Quem possuísse a
doença deveria andar com objetos de metal pendurados pelo corpo, indicando que
estava se aproximando. De fato, um passado triste, de discriminação e
isolamento dos doentes, que hoje já não existe e nem se faz necessário, uma vez
que a doença pode ser tratada e curada.
3. A Peste - Um breve
histórico
Muitos
livros de História dão conta de que os surtos de peste foram trazidos do
Oriente com as Cruzadas. Mas vale lembrar que antes das Cruzadas, bem antes, a
Europa Medieval era assolada por crises epidêmicas. É fato, no entanto, que o
maior surto se iniciou entre os séculos XII e XIV, se estendendo por muitos
anos. A forma mais comumente conhecida foi a peste bubônica.
A peste bubônica ficou popularmente conhecida como peste
negra. Cerca de um terço da população da Europa morreu em virtude da peste
bubônica. Para se ter uma simples ideia, é como se de cada três pessoas que vivessem
na época uma tivesse contraído a peste e morrido. Na época, todas as
explicações partiam da questão religiosa. Assim, Giovanni Boccaccio (1313 -
1375) buscou justificar a ocorrência da peste como “um justo castigo divino”. E
não só ele, mas muitas outras pessoas que viveram no período. Hoje, sabemos, a
peste é transmitida pelas pulgas que se alimentam do sangue dos ratos e depois
se alimentam do nosso. Elas transmitem uma bactéria que só foi descoberta bem
no final do século XIX e recebeu o nome de Yersinia
pestis. Muito mais forte do que os soldados medievais, a Yersinia não fazia distinção entre
camponeses, senhores feudais e padres. Matou muitas, muitas, pessoas. Como os
hábitos de higiene não eram muito comuns no período, as pessoas constantemente
carregavam pulgas nas roupas. Assim, uma passava para a outra e, em poucos
dias, o camponês, o senhor feudal, o padre apresentavam um quadro febril,
seguido de um inchaço nas juntas (os bulbos), marcado por uma cor rubra (um
vermelho bem escuro), indicando a necrose, ou seja, o apodrecimento dos
tecidos, vasos sanguíneos e carne. Era a peste se manifestando dias após a
picada da pulga.
Mas
não foi só a peste bubônica que matou na Idade Média. Não! Tivemos a peste
pneumônica, muito pior inclusive. A peste pneumônica, acreditam os cientistas,
seria decorrente da bubônica, só que transmitida por gotas de saliva. Se a
bubônica era transmitida pela picada da pulga, bastava um doente tossir próximo
a alguém sem cobrir a boca que a pneumônica se espalhava. E a doença se
manifestava com uma força maior.
Fato
é que os primeiros registros dão conta de que a peste bubônica chegou à Europa
via península Itálica, junto com os mercadores que voltavam do Oriente para
abastecer as prósperas cidades italianas. E isso por volta da primeira metade
do século XIV.
Conforme alguns pesquisadores e pesquisas, a peste
negra é originária das estepes da Mongólia, onde pulgas hospedeiras da bactéria
Yersinia pestis infectaram diversos
redores que entraram em contato com zonas de habitação humana. Na Ásia, os
animais de transporte e as peças de roupa dos comerciantes serviam de abrigo
para as pulgas infectadas. Nos veículos marítimos, os ratos eram os principais
disseminadores dessa poderosa doença. O intercâmbio comercial entre o Ocidente
e o Oriente, reavivado a partir do século XII, graças às Cruzadas e os
Renascimentos Comercial e Urbano, explica a chegada da doença na Europa.
Como vimos, o contato humano com a Peste se dá e desenvolve-se
principalmente pela mordida de pulgas, que antes se alimentam do sangue dos
ratos ou pela transmissão aérea (peste pneumônica).
Em sua variação bubônica, a bactéria cai na corrente
sanguínea, atacando o sistema linfático e provocando a morte de diversas
células, o que acaba por criar dolorosos inchaços entre as axilas e a virilha. Sequencialmente,
e como resultado do quadro relatado, esses inchaços, conhecidos como bubões, se
espalham por todo corpo.
Já quando ataca o sistema circulatório, o infectado
tem uma expectativa de vida de aproximadamente uma semana, caso não se inicie
um imediato tratamento. Além de atacar o sistema linfático, a enfermidade também
pode atingir o homem pelas vias aéreas atacando diretamente o sistema
respiratório (novamente estamos tratando da peste pneumônica). No caso da peste
pneumônica, após o contágio o individuo tinha uma expectativa de vida de, no
máximo, dois dias.
A ausência de quaisquer conhecimentos
científicos fez surgir medidas profiláticas preconceituosas e ridículas.
Movimentos de xenofobia e aversão aos judeus se tornaram comuns no período.
Como a população judaica da Europa, bem como do Oriente, adotava medidas de
higiene, algo inovador para a época, dificilmente ficavam doentes e morriam.
Logo, as populações católicas da Europa passaram a definir que a Peste nada
mais seria de que uma maldição trazida pelos judeus. E muitos foram os
católicos que passaram a perseguir e matar pessoas judaicas.
Outros afirmavam que as cidades carregavam essa
maldição, culpa dos burgueses, que cometiam um dos pecados capitais, segundo a
Igreja Católica: a usura. De fato, as cidades eram locais de maior incidência
da doença, uma vez que havia um número maior de pessoas por km2.
Genial foi Leonardo da Vinci (1452 - 1519), que já no século XV começou a
associar a proliferação de doenças nas cidades com a falta de higiene das
mesmas. Assim, Leonardo propôs as primeiras obras de saneamento básico, além de
passar a adotar medidas de asseio, tais como o uso de um pano umedecido para se
limpar ao final dos dias. Fato é que, Leonardo chegou próximo aos setenta anos
em uma época em que a expectativa de vida mal chegava aos 40!
Os surtos urbanos duravam cerca de quatro a cinco
meses, mas houve cidades que conviveram por décadas com a doença. Depois de
matar muitos citadinos, outra crise se instalava. E que também fazia as suas
vítimas!
Não havia nenhum tipo de abastecimento, nem pessoas
para exercer as mais simples funções. Seja no campo, seja na cidade, a Peste
trazia consigo um rastro de catástrofes. Com
a morte de muitos camponeses, várias foram as regiões da Europa que ficaram sem
produzir absolutamente nada. Sem alimento a situação ficava cada vez pior. Só
para se ter uma ideia, muitas foram as regiões que quase viram pequenos reinos
e feudos desparecerem porque não havia gente para trabalhar. Um documento
histórico mostra claramente isso
“A
fim de que meus escritos não pereçam juntamente com o autor, e este trabalho
não seja destruído... deixo meu pergaminho para ser continuado, caso algum dos
membros da raça de Adão possa sobreviver à morte e queira continuar o trabalho
por mim iniciado”[2].
No
final do século XIV a Peste matava 200 pessoas por dia em Londres e cerca de
800 em Paris. Sem camponeses, o sistema feudal se enfraquecia. Foram as crises
epidêmicas uma das principais causas do fim do feudalismo, sem dúvida.
Diante de tal quadro, até o século XIX, as medidas mais
adotadas (porém pouco eficientes) eram criar locais de quarentena para os infectados,
impedir a chegada de novas pessoas, circundar e isolar algumas cidades. Mais
uma vez, quem nelas estava morreria. Seja pela Peste, seja pelo abandono. Segundo
as estimativas até o final da Idade Média, a Peste matou por volta de 75
milhões de pessoas! Indubitavelmente, uma das maiores crises epidêmicas que o
mundo já presenciou.
A partir
do século XVIII as crises epidêmicas na Europa diminuíram, porém outras áreas
do globo já sentiam os seus efeitos. Uma dessas áreas era o Brasil. E, partir da agora esse será o nosso foco: tratar da
Peste em solo brasileiro.
5. O Brasil e a Peste
Diversos
e importantes artigos científicos, bem como dissertações em áreas da
pós-graduação têm sido escritos abordando o tema. E ainda muitas incertezas
persistem sobre esse assunto.
Para
discorrer sobre o mesmo, será utilizada algumas informações trazidas com a
dissertação de mestrado de Matheus Alves Duarte da Silva. O tema central da
pesquisa foi a crise epidêmica que assolou a cidade do Rio de Janeiro nos idos
de 1900.
No dia 21
de maio de 1900 foi declarada uma epidemia de peste bubônica na então capital
do Brasil. Os primeiros casos haviam sido registrados no mês de janeiro,
atingindo a população mais pobre da cidade, formada por moradores da zona
portuária e trabalhadores de armazéns.
Mas essa não foi a única epidemia do Rio, nem do Brasil. Quase que
anuais, entre 1900 e 1904, a doença matou um pouco mais de 1300 cariocas. Assim
como no caso da Europa, a doença também chegou trazida do Oriente,
desembarcando no Brasil com os ratos que vinham nos navios que aportavam em
Santos. A situação começou a assumir proporção tamanha que motivou o governo
federal a designar Oswaldo Cruz para "verificar a etiologia da epidemia de Santos junto com
Adolpho Lutz e Vital Brazil. Com a confirmação oficial de que se tratava da
peste bubônica, as autoridades sanitárias decidiram instituir laboratórios para
produção de vacina e soro contra a peste: o Instituto Butantan, em São Paulo, e
o Instituto Soroterápico Municipal no Rio de Janeiro, que mais tarde viria a se
tornar a Fiocruz"[3].
É
interessante analisarmos a enorme importância dada pelo governo para o combate
à doença. No entanto, medidas como o combate às pragas urbanas, essa ainda hoje
padecem de ações mais efetivas. Isso porque parte significativa do Brasil não
possui saneamento básico. E o descarte desordenado de esgoto e lixo doméstico é
fator circunstancial para a proliferação de ratos e ratazanas (basta lembrar
que essa última espécie, também trazida para o solo americano com as
embarcações que vinham da Europa assumiu o papel de vetor da doença).
Em 1903 o governo da prefeitura do Rio de Janeiro
estabelecia prêmios para aqueles que matassem ratos e os entregassem ao
governo. Ações que obviamente geraram um mercado paralelo. Há registros de
pessoas que criavam os animais e depois o matavam. "A imprensa da época
não perdeu a piada".
A
partir da criação de institutos de pesquisa e de produção de vacina, a doença
diminuiu sua manifestação. O Butantan assumiu papel preponderante nesse
processo. Mas ainda hoje se registram casos, dentro e fora do Brasil.
O
sítio virtual do Ministério da Saúde do Brasil mantém uma pequena nota sobre a
doença, e o perigo de proliferação da mesma.
Como
dito, fora do Brasil a doença ainda vitima e mutila pessoas. Um recente caso
nos EUA provocou uma caçada cinematográfica aos ratos. Um fazendeiro do Estado
do Texas foi visitar a irmã em Nova Iorque, mas ao chegar ao destino final foi
encaminhado ao hospital. Diagnóstico: peste bubônica. O senhor de idade teve as
duas pernas mutiladas.
Em
recente matéria da BBC, aparecem dados sobre a ocorrência da peste nos EUA,
inclusive com um título bastante provocativo, conforme legenda abaixo.
"Em pleno século 21, EUA convivem
com a peste, que matou milhões na Idade Média - Os Estados Unidos levaram o homem à Lua há quase 50
anos, mas americanos ainda morrem de uma doença que arrasou a Europa na Idade
Média. Por que isso ocorre?"[4]
Fato é que dados estatísticos dão conta de um crescimento
da doença nos EUA. E fortuitamente casos também são registrados em outras
nações, inclusive no Brasil.
A peste é de comunicação obrigatória
às autoridades. Ainda hoje os indivíduos que apresentam a doença são postos em
quarentena. O tratamento com antibióticos revolucionou o combate à doença, sendo que a mesma
passou a ser classificada como de certa facilidade de controle e combate.
Tanto no Brasil quanto fora, a notificação é
compulsória, precedendo uma obrigatória investigação.
6. Bibliografia
Franco
JR., Hilário. O Feudalismo. São Paulo, Brasiliense. (Co. Tudo é História, no.
32).
___________.
As Cruzadas. São Paulo, Brasiliense. (Col. Tudo é História, no. 34)
___________.
A Idade Média. O nascimento do Ocidente. São Paulo, Brasiliense.
___________
& OLIVEIRA, Ruy de. O império Bizantino, São Paulo. Brasiliense (Col. Tudo
é História, no. 107).
História de Portugal/ José Mattoso...
[et al]; José Tengarrinha (org.). Bauru, EDUSC.
História do Brasil. Empresa Folha da Manhã e Zero Hora/
RBS Jornal: São Paulo; 1997; 2ª. Edição.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem/ Leo
Huberman; tradução de Waltensir Dutra. – 21ª. ed. – Rio de Janeiro: Guanabara,
1986.
Miceli, Paulo. O feudalismo. São
Paulo, Atual. (Col. Discutindo a História).
Monteiro, Hamilton M. O feudalismo.
Economia e sociedade. São Paulo, Ática. (Série Princípios, no. 39)
Moraes,
José Geraldo Vinci de. Caminho das Civilizações: da pré-história aos dias
atuais – São Paulo, Atual.
[1] em linhas bem gerais, período onde a
doença está se espalhando.
[2]
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem/ Leo Huberman; tradução de
Waltensir Dutra. – 21ª. ed. – Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 49
[3]https://agencia.fiocruz.br/historiador-investiga-epidemia-de-peste-no-rio-de-janeiro-em-1900
[4]
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151015_peste_eua_tg
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