A
história da habitação no Brasil no século XIX pode ser brilhante exemplificada
e entendida através de uma obra literária: “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo,
publicado em 1890[2].
Isso se nos debruçarmos em uma análise que leve em conta as habitações
populares dos espaços urbanos das maiores cidades brasileiras na segunda metade
do século XIX. O povão das cidades, a maior parte da população, vivia nos mais
diversos cortiços, principalmente em cidades como o Rio de Janeiro. Nesses
espaços, marcados por cômodos minúsculos, banheiros coletivos e pouca (para não
dizer nenhuma) privacidade, se reuniam homens brancos, portugueses ou não,
negros alforriados, viajantes que alugavam quartos por um determinado período.
A pluralidade da sociedade brasileira estava presente nos cortiços. Por isso,
em sua obra, Aluísio conta que se ouvia desde os tristes fados cantados pelos
portugueses até o barulho dos atabaques e pandeiros, tocados pelos negros.
Nos
outros espaços, a população brasileira vivia em casas extremamente simples,
muitas delas com telhados forrados por folhas de palmeira, paredes de pau a
pique (uma estrutura armada com bambu e cipó, e depois preenchida com barro) ou
nas instalações das fazendas produtoras de café.
Em
um país marcadamente rural era muito raro as pessoas viverem nas cidades. As
casas não possuíam muitas das estruturas vistas hoje. Não havia privada, o
banho era tomado em tinas d’água (quando não no rio) e o chão era normalmente
de terra batida. Aliás, a vida no interior das casas mais humildes se resumia a
dormir, comer e outras poucas coisas, uma vez que os espaços eram escuros e não
tão auspiciosos para receber visitas.
Casa
com parede de pau a pique, imagem ainda comum no interior de algumas
regiões do Brasil[3].
O
que as pessoas comiam?
Hoje
você liga para o delivery e em
questão de minutos o seu pedido está em mãos. Quando não você vai até o mercado
mais próximo e volta com a sacolinha cheia de mercadorias para degustar, do
pãozinho matinal até os ingredientes para a macarronada do domingo.
E
no século XIX? Era assim também? Rolava um mercado a poucos metros de casa? Que
nada. Mesmo nos centros urbanos eram raros os mercados que forneciam viveres,
comida, alimentação. Conhecidos popularmente como vendas, tais espaços existiam
nos centros urbanos e em algumas áreas de fazenda. Já no inicio da formação do
Brasil colônia se configuraram como um dos poucos lugares onde os brasileiros
conseguiam comprar coisas para colocar na mesa. E logo se tornaram áreas de
intensa e interessante vida social. O dono da venda normalmente era um dos
camaradas mais bem informados da região. Sabia das últimas ocorridas aqui e
acolá, quem chegou e quem partiu.
Na
obra “O Cortiço”, Aluísio narra a venda de João Romão, um comerciante português
que também era dono do cortiço e da pedreira onde se desenrola a história. Fica
claro na obra que a venda de Romão era um espaço para adquirir mercadorias, mas
muito mais para conversar, sentar e tomar um gole de cachaça, ou restilo, como
era chamado na época.
Assim,
uma das áreas de lazer dos homens e chefes de famílias do século XIX no Brasil
era, de certa forma, a porta da venda.
De
resto, era comum que nas áreas mais isoladas as famílias criassem galinha,
porcos e, em casos raros, cabeças de gado para conseguirem se alimentar. E a alimentação
era complementada pelo peixe pescado nos rios e lagos e pelo animal caçado nas
matas.
Tal
situação acima descrita não foi exclusividade do Brasil. Famílias dos EUA,
durante o século XIX, se alimentavam de aves nativas, principalmente na época das
festividades. Daí, sobrava para o peru, ave das florestas da América do Norte.
No Brasil quem ia para panela eram codornas, marrecas e jacus...
Caçadores
estadunidenses no começo do século XX. “Hoje tem peito de peru!”[4]
Na
mesma obra acima citada, Aluísio narra um interessante fenômeno ocorrido com os
homens portugueses (ou demais estrangeiros) que passavam a residir no Brasil:
eles se abrasileiravam, se tornavam brasileiros nos usos e costumes. E a
alimentação acompanhava essa curiosa e intrigante transformação. Através de um
relato feito nas páginas do livro “O Cortiço”, Aluísio possibilita que
conheçamos o que ia aos pratos do Brasil, algumas das nossas iguarias do século
XIX. Acompanhe:
“E
assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de
aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. (...) A revolução afinal foi
completa: a aguardente de cana substitui o vinho; a farinha de mandioca sucedeu
à broa; a carne-seca e o feijão-preto ao bacalhau com batatas e cebolas
cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-de-cheiro invadiram vitoriosamente a
sua mesa; o caldo verde, a açorda e o caldo de unto[5]
foram repelidos pelos ruivos e gostosos quitutes baianos, pela muqueca[6],
pelo vatapá[7] e
pelo caruru[8]; a
couve à mineira destronou a couve à portuguesa; o pirão[9]
de fubá ao pão de rala[10],
e, desde que o café encheu a casa com o seu aroma quente, Jerônimo principiou a
achar graça no cheiro do fumo e não tardou a fumar também com os amigos”.[11].
Vatapá,
um dos pratos acima citados como parte do processo de abrasileiramento do
português Jerônimo[12].
Em
nosso próximo texto sobre o século XIX no Brasil, veremos como as pessoas se
locomoviam e se comunicavam. Aguarde!
[1] RAMOS, Pedro Henrique Maloso
[2] A edição utilizada para a confecção
desse texto foi a seguinte AZEVEDO, Aloísio. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1997
[3] Imagem extraída do sítio http://www.verdegrande.cbh.gov.br/galeria.aspx
[4]
Imagem extraída do sítio http://www.turkeydog.org/
[5] Ambos os pratos, açorda e caldo
de unto, são pratos típicos de Portugal. A açorda é uma espécie de sopa, tendo
como ingredientes principais alho,
sal, azeite, água em ebulição e pão fatiado. Já o caldo de unto é outra sopa,
porém feita com banha de porco (esse o ingrediente que dá nome à sopa, o unto).
[6] Muqueca (moqueca seria a grafia
mais utilizada, porém ambas são corretas) é um cozido de peixe com camarão, lagosta,
palmito e frutos do mar com diferentes temperos.
[7] Vatapá é um prato típico da
Bahia, e o seu preparo pode incluir pão molhado ou farinha de
rosca, fubá, gengibre, pimenta-malagueta, amendoim,
castanha de caju, leite de coco, azeite de dendê, cebola e tomate. Pode ser preparado com camarões frescos
inteiros, ou secos e moídos, com peixe, com bacalhau ou
com carne de frango, sendo muitas vezes
acompanhados de arroz. Possui uma consistência
é cremosa.
[8] O caruru trata-se de um cozido
de quiabos (carurus). Costuma ser
servido acompanhado de acarajé ou abará, de pedaços de carne, frango ou peixe,
de camarões secos, de azeite de dendê e de pimenta.
[9] O pirão nada mais é do que um
prato feito à base de farinha de mandioca, tendo por vezes uma consistência de
sopa.
[10] Parte da culinária portuguesa, o
pão-de-rala leva em sua receita muitos ovos, além de açúcar, raspa de limão,
amêndoas e abóbora.
[11] AZEVEDO, Aloísio. O Cortiço. São
Paulo: Ática, 1997. p. 86.
[12]
Imagem extraída do sítio http://pt.wikipedia.org/wiki/Vatap%C3%A1
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