A Baixa Idade Média[1]
Muitos foram os fatos que mostraram que a Baixa Idade Média já
apresentava características muito diferentes da Alta Idade Média. Se tivéssemos
uma máquina do tempo e pudéssemos visitar o século VII, na Alta Idade Média, e
depois o século XIV, já na Baixa Idade Média, voltaríamos com a certeza de que
a sociedade não era a mesma, isso é fato. Nos cabe agora comprovar essa
afirmação.
Conforme visto no texto passado, a produção agrícola aumentou de maneira
significativa entre os séculos X e XI. E muitos fatores contribuíram para que
isso ocorresse. Vale lembrar que a produção agrícola, em algumas áreas da
Europa Medieval, obedecia a um sistema conhecido por bienal. Isso significa
dizer que a terra era dividida em dois lotes, sendo que um produzia e outro ficava
em descanso (em pousio[2]).
Assim, a área em descanso voltava a ser fértil. O problema era que se em um ano
as áreas com cultivo fossem atingidas por geadas, certamente as populações
passariam fome. Além do fato de se produzir menos, já que 50% das terras
estavam em descanso.
Porém, a partir do século VIII, algumas áreas centrais da
Europa começaram a utilizar o sistema trienal. A terra agora era dividida em
três lotes. Isso, segundo o historiador Charles Parain, pode ser
compreendido “como a maior inovação agrícola da Idade Média”[3]. E ele tem motivos de
sobra para afirmar isso. Acompanhe a tabela abaixo:
Sistema Trienal |
Campo A |
Campo B |
Campo C |
Ano 1 |
Trigo e centeio |
Descanso (pousio) |
Aveia |
Ano 2 |
Aveia |
Trigo e centeio |
Descanso (pousio) |
Ano 3 |
Descanso (pousio) |
Aveia |
Trigo e centeio |
Com o sistema trienal apenas 1/3 da terra ficava sem produzir, o que
aumentou a produção em cerca de 30%, se compararmos com o sistema bienal. O
aumento na produção dos alimentos levou a uma queda nas taxas de mortalidade,
decorrentes de surtos de fome, comuns na Alta Idade Média, além de levar à
produção do excedente, que começou a ser comercializado nas feiras e villas.
Outro fator recentemente apresentado pelos historiadores, com o auxílio
de outros cientistas, foi o fato de que os invernos a partir do século XI
começaram a se tornar menos rigorosos, o que fez com que as plantações não
sofressem tanto com as geadas e as pessoas não morressem de frio. Com o aumento
da população, muitas áreas tornaram-se campos cultiváveis. Não seria exagero
pensar que a figura do camponês derrubando árvores para iniciar o plantio em um
campo fosse a imagem mais comum do início da Baixa Idade Média.
Tais eventos, no entanto, auxiliaram a ocorrência das crises medievais.
Sem os mesmos, muito provavelmente as crises não teriam ocorrido com tamanha
intensidade.
As crises...
O aumento populacional levou a um problema simples: o esgotamento dos
feudos. Muitos eram os camponeses marginalizados. Marginalizados literalmente,
já que viviam às margens dos feudos. Muitos começavam a roubar para poder
sobreviver. Outros, como vimos, viviam dos excedentes, revendendo-os nos burgos
e feiras. Estes deram origem aos comerciantes. Aliás, a cidade passou a assumir
o sinônimo de liberdade. Por isso, Leo Huberman escreveu o seguinte em seu
livro “A história da riqueza do homem”: “A população das cidades queria
liberdade. Queria ir e vir quando lhe aprouvesse. Um velho provérbio alemão,
aplicável a toda a Europa Ocidental, ‘o ar da cidade torna um homem livre’”[4]. Huberman conclui seu
raciocínio com uma brincadeira. “Se Lorris e as demais cidades possuíssem a
técnica de anúncios de beira de estrada do século XX, poderiam ter usado um
letreiro como este:”[5]
Assim, fica claro que as cidades começaram a colocar em dúvida a figura
do feudo e da servidão medieval. Muitos senhores feudais, a princípio, não
notaram a influência que os burgos teriam sobre o fim da economia medieval. Só
a partir do século XIV isso ficou muito nítido. E daí para a instauração de
novas taxas, novos impostos, foi um pulo. Cientes da riqueza dos burgos e
buscando manter os seus privilégios, muitos senhores feudais passaram a criar
novas obrigações. Alguns reinos, como veremos a seguir, buscando manter o
exército e os privilégios da nobreza, aumentaram seus impostos e instituíram
outros tantos. Muitas revoltas camponesas começaram a ocorrer. Nessas revoltas,
ficava claro que os camponeses já enxergavam a sociedade de uma forma
diferente, e as cidades contribuíram muito para isso.
E quanto aos camponeses marginalizados, como se livrar desse “problema”?
O papa Urbano II dava uma solução prática ao problema: enviar alguns camponeses
para lutar nas Cruzadas. Assim, várias situações eram resolvidas: um “exército”
era formado praticamente sem custo algum; novas áreas poderiam ser
conquistadas, ajudando a resolver o problema da nobreza despossuída, além de
impedir que uma massa de camponeses marginalizados tivesse tempo para roubar ou
mesmo iniciar uma revolta.
As Cruzadas também auxiliaram na ocorrência das crises da Baixa Idade
Média. Com elas, novas rotas comerciais foram abertas. No lugar da economia
medieval, assumia a economia com forte apelo comercial, uma economia que daria
origem ao capitalismo.
As crises epidêmicas
As crises epidêmicas pelas quais a humanidade já passou tornam-se fatos históricos de tamanha importância que muitos são os filmes, livros e imagens que registram o assunto. Elas mudam a forma como as pessoas encaram a sociedade, a vida. Vamos lembrar um caso próximo: a gripe relacionada ao vírus H1N1 (popularmente conhecida como gripe suína). Originada no México, ela fez com que a capital daquele país ficasse com as ruas vazias no período de surto[6] da doença. Isso porque as pessoas ficaram com medo de contrair a doença.
Aqui no Brasil, aulas foram suspensas, o álcool em gel ficou bem
conhecido, além de a gente relembrar que, na hora de expirar, a mãozinha deve
cobrir o nariz...
Na Idade Média muitas foram as crises epidêmicas e algumas vezes as
doenças assumiram o (triste) papel de segregação[7] social.
Trataremos deste assunto a partir de agora, lembrando que estamos falando de
vidas, portanto, algo bastante sério.
Muitos livros de História dão conta de que os surtos de peste foram
trazidos do Oriente, com as Cruzadas. Mas vale lembrar que antes das Cruzadas,
bem antes, a Europa Medieval era assolada por crises epidêmicas. É fato, no
entanto, que o maior surto se iniciou entre os séculos XII e XIV, se estendendo
por muitos anos. A forma mais comumente conhecida foi a peste bubônica. A peste
bubônica ficou popularmente conhecida como peste negra. Cerca de um terço da
população da Europa morreu em virtude dessa doença. Para você ter uma simples
ideia, é como se de três pessoas que viviam na época uma tivesse contraído a
peste e morrido. No período, todas as explicações partiam da questão religiosa.
Assim, Boccacio (citado no início desse texto), buscou justificar a ocorrência
da peste como “um justo castigo divino”. E não só ele, mas muitas outras
pessoas que viveram no período.
Hoje sabemos que a peste é transmitida pelas pulgas que se alimentam do
sangue dos ratos e depois se alimentam do nosso. Elas transmitem uma bactéria
que só foi descoberta bem no final do século XIX e recebeu o nome de Yersinia
pestis. Muito mais forte do que os soldados medievais, a Yersinia não
fazia distinção entre camponeses, senhores feudais e padres. Matou muitas,
muitas, pessoas. Como os hábitos de higiene não eram muito comuns (na verdade,
não eram praticados), as pessoas constantemente carregavam pulgas nas roupas.
Assim, uma passava para a outra e, em poucos dias, o camponês, o senhor feudal,
o padre apresentavam um quadro febril, seguido de um inchaço nas juntas (os
bulbos), marcado por uma cor rubra (um vermelho bem escuro), indicando a
necrose, ou seja, o apodrecimento dos tecidos, vasos sanguíneos e carne. Era a
peste se manifestando dias após a picada da pulga.
Mas não foi só a peste bubônica que matou na Idade Média. Tivemos a
peste pneumônica, muito pior inclusive. A peste pneumônica, acreditam os
cientistas, seria decorrente da bubônica, só que transmitida por gotas de
saliva. Se a bubônica era transmitida pela picada da pulga, bastava um doente
tossir próximo a alguém sem cobrir a boca que a pneumônica se espalhava. E a
doença se manifestava com uma força maior.
Havia outra doença que isolava pessoas e matava na Idade Média: a
Hanseníase, popularmente conhecida como lepra. A doença “é infecciosa, de
evolução crônica (muito longa) causada pelo Mycobacterium
leprae, micro-organismo que acomete principalmente a pele e os nervos das
extremidades do corpo. A doença tem um passado triste, de discriminação e
isolamento dos doentes, que hoje já não existe e nem é necessário, pois a
doença pode ser tratada e curada”[8]. Mas, na Idade Média, as
pessoas com hanseníase viviam isoladas da sociedade. Eram criados locais onde
muitas delas passavam a viver, chamados de leprosários ou gafarias. Quem
possuísse a doença deveria andar com objetos de metal pendurados pelo corpo,
indicando que estava se aproximando. Talvez este seja o traço mais cruel das
doenças na Idade Média: a segregação social.
Com as crises epidêmicas, a morte passou a ser representada com maior
ênfase na Idade Média. Muitos foram os registros da doença. A religião também
se manifestava na forma como as pessoas entendiam as doenças. Sem os
equipamentos e o conhecimento que possuímos, as explicações eram praticamente
todas pautadas nos princípios religiosos.
Além do mais
Com a morte de muitos camponeses, várias foram as regiões da Europa que
ficaram sem produzir absolutamente nada. Sem alimento a situação ficava cada
vez pior. Só para termos uma ideia, muitas foram as regiões que quase viram
pequenos reinos e feudos desparecerem porque não havia gente para trabalhar.
Morreu muita gente mesmo. Há um documento histórico que confirma isso: “A
fim de que meus escritos não pereçam[9] juntamente
com o autor, e este trabalho não seja destruído... deixo meu pergaminho[10] para
ser continuado, caso algum dos membros da raça de Adão possa sobreviver à morte
e queira continuar o trabalho por mim iniciado”[11].
Ficou claro que o homem medieval que escreveu as linhas acima não
acreditava que alguém pudesse sair vivo de tamanha tragédia. E ele tinha
motivos para isso. No final do século XIV a peste matava 200 pessoas por dia em
Londres e cerca de 800 em Paris. O dado a seguir é ainda mais impressionante.
Houve anos onde os índices de morte superaram os 700% de acréscimo, se
comparados aos anos onde as crises epidêmicas não se manifestaram[12].
Sem camponeses, o sistema feudal se enfraquecia. Foram as crises
epidêmicas uma das principais causas do fim do feudalismo, sem dúvidas.
[1] professor Pedro Henrique Ramos
[2] prática agrícola que dividia cultivável em partes (duas no sistema
bienal, três no sistema trienal), deixando todo ano, alternadamente, uma dessas
áreas sem cultivo, para que a terra naturalmente voltasse a ser fértil
[3] in FRANCO JR., Hilário. A Idade Média – O
nascimento do Ocidente. – 6ª. ed. – São Paulo: Brasiliense, 1995. p.44
[4] Huberman, Leo. História da riqueza do homem/ Leo Huberman; tradução de
Waltensir Dutra. – 21ª. ed. – Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 28
[5] Huberman, Leo. História da riqueza do homem/ Leo Huberman; tradução de
Waltensir Dutra. – 21ª. ed. – Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 29
[6] período onde a doença está se espalhando.
[7] divisão, isolamento, separação
[8] www.dermatologia.net
[9] do verbo perecer, em nosso texto tem o significado de se perder,
desaparecer, “morrer”.
[10] uma espécie de folha onde se escreviam documentos, textos, cartas.
Poderia ser feito de pele de animal.
[11] in Huberman, Leo. História da riqueza do homem/
Leo Huberman; tradução de Waltensir Dutra. – 21ª. ed. – Rio de Janeiro:
Guanabara, 1986. p. 49
[12] Braudel, Fernand, 1902 - 1985. Civilização material, economia e
capitalismo séculos XV - XVIII/ Fernand Braudel; tradução Telma Costa. - São
Paulo: Martins Fones, 1995. p. 71
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